Desde março de 2020, temos assistido a uma série de descontinuidades nos
serviços em detrimento de restrições sanitárias. Praticar o isolamento e o
distanciamento social são as principais medidas preventivas para o Covid-19.
No entanto, sob essa justificativa, alguns serviços fundamentais de
assistência à saúde mental dos profissionais de segurança pública estão
ameaçados.
Considerados como trabalhadores essenciais desde o início da pandemia, os
profissionais de segurança pública permanecem nas ruas, expostos ao vírus e
convivendo com o medo de se contaminar e contaminar seus familiares.
Nesse contexto, o suporte emocional se faz essencial para esses agentes.
Sabemos que o descaso com a saúde mental dos profissionais de segurança
pública não teve início com a pandemia. A saúde mental é um tema polêmico
e pouco compreendido na segurança pública no Brasil. Segundo o Ministério
da Saúde, o suicídio é um problema de saúde pública. Entretanto, as
organizações de segurança pública brasileiras tendem a considerá-lo como
um problema de saúde do sujeito em sofrimento psíquico.
Um reflexo dessa visão é que as instituições não se preparam para lidar com o
problema de uma forma coletiva. Os serviços assistenciais, quando existem,
enfrentam uma série de desafios, desde a carência de profissionais até as
resistências internas para manter seu funcionamento. A lógica dominante ainda é a de que um bom policial não precisa deste tipo de apoio e de que
muitos policiais fingem adoecimento para se esquivarem do trabalho policial.
O estudo que realizamos em 2014, nas 27 unidades federativas, nos ensinou
que o cuidado com a saúde mental dos agentes de segurança pública não faz
parte do planejamento estratégico das polícias militares. A inexistência de
vontade política evidencia que a agenda das políticas estaduais de segurança
pública, desde a institucionalização do primeiro Plano Nacional de Segurança
Pública no país, em 2000, não avançou.
É evidente que identificamos alguns avanços nos últimos anos. Muitos deles
são iniciativas de policiais que passaram a buscar diversas fontes de
conhecimento para mudarem a realidade de suas próprias instituições. No
Distrito Federal, por exemplo, o Programa de Valorização da Vida foi instituído
em 2018, por meio de articulação entre a Capelania e o Centro de Atendimento
Psicossocial. O objetivo era fornecer uma perspectiva interdisciplinar,
comprometida com o cuidado integral e preventivo da saúde.
Apesar dos avanços, identificamos que, quando não acontece o
comprometimento coletivo dos gestores, com a promoção da saúde mental
dos agentes, as ações de intervenção e prevenção são rapidamente
enfraquecidas ou descontinuadas. No entanto, essa escolha tem gerado uma
série de revezes.
Em primeiro lugar, para os próprios policiais, que não encontram o amparo
necessário em suas instituições. Em segundo lugar, para as famílias desses
agentes que, muitas vezes, representam o espaço onde policiais extravasam
suas tensões e frustrações. Em terceiro lugar, para a própria instituição
policial, que passa a conviver com um ambiente de trabalho marcado por
perdas, desde casos de afastamento por saúde mental e até de suicídio entre
os seus agentes. Por m, para a sociedade, anal é ela que demandará os
serviços deste policial.
Existe um longo caminho a ser percorrido para melhorar a atenção a saúde
dispensada a esses profissionais. A existência de espaços de escuta e
atendimento qualificado, sem dúvida, é um ponto fundamental. Entretanto, há
questões organizacionais que precisam ser revisadas, entre elas estão: longas
jornadas, condições inadequadas de trabalho, punições arbitrárias, convívio
com humilhações verbais, carência de recursos humanos e materiais, entre
outros.
Quaisquer que sejam as ações de promoção da saúde desses profissionais, é
preciso que elas tenham capilaridade e perenidade. Em momentos de crise, o
cuidado com a saúde emocional do profissional de segurança pública é
fundamental. Por isso, reforçamos que a saúde mental deve fazer parte da
agenda de prioridades das políticas de segurança pública do país. Do
contrário, todos sairão perdendo.
Dayse Miranda – Diretora Executiva do Instituto de Pesquisa, Prevenção e Estudos em
Suicídio (Ippes). Doutora em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USO),
estudiosa sobre o tema suicídio na segurança pública, organizadora e uma das autoras do
livro “Por que Policiais se Matam”.
Fernanda Cruz – Socióloga, pesquisadora de pós-doutorado no Núcleo de Estudos da
Violência (NEV-USP), associada do Grupo de Estudos de Pesquisa em Suicídio e Prevenção
(Gepesp).
Fonte: Fonte Segura