Vigora no Brasil,há alguns anos, a era do interpretativismo. É consenso, entre os operadores do direito atuais – ao menos entre os minimamente sérios – que hoje, no país, a interpretação vale muito mais que a norma, seja regra, seja princípio.
Uma excelente forma de iniciar o estudo deste recente fenômeno é traçando seu marco inicial. Quanto a este ponto específico, não há consenso. Lembro-me, perfeitamente, da primeira vez em que me caiu a ficha: a criminalização da “homofobia”.
O ano era 2019, e o interpretativismo já era praticado à plena luz do dia. Seu principal comparsa, o ativismo judicial, vinha em uma crescente, e não à toa: o nefasto Congresso Nacional, com suas frequentes e graves omissões, insistia em não legislar sobre temas caros à sociedade.
Nos anos anteriores, o ativismo judicial, o justiceiro do ordenamento – quase que um Batman – tinha se estabelecido como algo moderno, cool, um antídoto natural ao vilão corrupto e desleixado que era o Legislativo. Mandava reverter Estado de coisas inconstitucional; obrigava o Estado a comprar remédios caríssimos; afastava, quase sempre, a letra fria e gramatical da lei, aquela coisa empoeirada e brega que de nada servia. E ainda despencava em concursos.
Todos os livros de Direito Constitucional, ao explicar a carrancuda “interpretação gramatical”, o faziam em tom de crítica. Que coisa mais sem graça, interpretar que a lei quis dizer exatamente o que está escrito. É muito mais emocionante pensar que há algo escondido lá trás, algum tesouro no fim do arco-íris, a ser revelado pela arte quase divina da interpretação. Os métodos teleológicos, tópico-problemáticos, científico-espirituais eram infinitamente mais festejados.
Mas nunca antes, na história democrática desse país, um tipo penal havia sido criado sem lei prévia que o definisse. Estava lá, estampado no inciso XXXIX da carta magna, o princípio da reserva legal. Seria o primeiro grande teste de força do interpretativismo: ignorar uma norma constitucional expressa era audacioso, mas se desse certo, o céu seria o limite. High risk, high reward.
A ousadia funcionou. Houve barulho, mas não o suficiente. Três ministros, dentre eles Marco Aurélio de Mello, se opuseram. Naquela época, o decano era um dos mais criticados. Era apontado como um rebelde, insurgindo-se, quase que por teimosia, contra o resto da corte. Sempre minoritário.
Como as coisas mudam rápido no Brasil!
Hoje, o mesmo Marco Aurélio é exaltado. Dias atrás, no Fórum da Liberdade, Fernando Schüler, ao receber sua premiação, destacou sua coragem, pretérita e atual. E outros ministros, outrora venerados, agora já não o são.
Lembro que alguns poucos juristas, como Lenio Streck, começavam, lá atrás, a franzir o cenho. Em 2020, detectou o surgimento do que chamou de panconstitucionalismo. Apontou que “Nos meus tempos de faculdade dizia-se: uma lei derruba bibliotecas inteiras; hoje se pode dizer: uma decisão judicial derruba não somente as bibliotecas, mas também as próprias leis!”. De fato; as próprias leis e até a maior delas.
Fato é que, naquela oportunidade, com o nobre pretexto de combater a homofobia, o interpretativismo ganhou da Lei, da Constituição, da validade da norma, da segurança jurídica, da razoabilidade, de tudo. E tornou-se uma força da natureza, imparável, iniciando uma escalada vertiginosa até se estabelecer como a nova ordem nacional.
Lembro que foi exatamente ali, naquele julgado de 2019, que me acendeu o alerta. Os fins justificam os meios? Se há, de fato, o tal mandado de criminalização implícito na Constituição, pode ele simplesmente atropelar uma norma expressa, latente, e um dos mais importantes pilares do Direito Penal? Não me pareceu natural. O que era cool e justificado, começou a parecer perigoso e imprudente.
Não podemos deixar de apontar que inúmeros regimes antidemocráticos surgiram alegando combater alguma injustiça. A pretexto de lutar contra a discriminação, as omissões do Congresso e outros monstros, o interpretativismo nasceu, cresceu e hoje se tornou este ser glutão, que devora todas as normas que vê pela frente.
Mais recentemente, ameaçou abocanhar até mesmo a imunidade parlamentar material. Anuncia o site oficial do Senado que o Ministro Flávio Dino determinou, nesse mês, abertura de inquérito contra o Deputado Federal Marcel van Hattem por opiniões emitidas na tribuna, dentro do Congresso.
Ora, mas está escrito na Constituição que “Os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”. E encerra no ponto final. Mas o interpretativismo parece já anunciar, escrita a lápis, uma continuação: “invioláveis, mas veja bem…”. Aguardemos cenas dos próximos capítulos, para que o verdadeiro teor do artigo 53 seja revelado aos meros mortais. Será mais uma vítima da comemorada mutação constitucional?
Podemos vislumbrar que até mesmo cláusulas pétreas não parecem resguardadas da fome visceral de interpretar tudo. Interpretação mole, cláusula dura, tanto bate até que fura. A voracidade gerou até mesmo o fenômeno interessantíssimo da presunção de inconstitucionalidade. O volume de normas declaradas nulas é tão grande que hoje, quando se aprova algo, há sempre a cláusula flutuante de “aguardar para ver se o Supremo vai manter”. E às vezes, antes mesmo da edição da norma, entrevistas às mídias mainstream, oumensagens de Whatsapp em off já anunciam: se aprovar, vamos derrubar.
Hoje, o arraigado interpretativismo já ramificou seus tentáculos, produzindo alguns interessantes conceitos, ratificados inclusive em praça pública pelas maiores autoridades do país. São exemplos: a censura temporária; o poder moderador; o judiciário como poder político; a democracia relativa; a comissão da verdade e outros.
Nenhum destes conceitos encontra previsão constitucional, mas eis a maior beleza desse novo paradigma: não precisa ter. Se é possível contrariar a disposição literal e cristalina da Constituição, também é possível dizer o que ela não disse. Quem pode o mais, pode o menos.
No frigir dos ovos, convenhamos: se a Constituição cometeu tantos erros, e tantas omissões, qual sua razão de existir? Reconheçamos logo o judiciário como verdadeiro Poder Constituinte, permanente e fluído, já que muda de posição ao sabor do vento, a cada dois anos ou dois meses.
O único erro do interpretativismo, na nossa visão, é o de colocar meros homens de notável saber jurídico e reputação ilibada como seus guardiões. Na nossa visão, seria muito mais prudente encarregá-lo a semideuses, ou ao menos super-humanos geneticamente modificados, quiçá aparelhados com o neuralink de Elon Musk.
É que não faz sentido algum permitir a um único homem, ou mesmo a onze, anular tão facilmente o que uns duzentos ou mais elaboram, dentre Comissões de Constituição e Justiça, Consultores e Analistas Legislativos, Deputados, Senadores, e ainda milhões de eleitores por trás deles. Em se admitindo o contrário, de que vale aquela velha máxima de que “duas cabeças pensam melhor do que uma”?
De mais a mais, se a teoria do efeito pêndulo possuir alguma procedência, voltaremos, daqui a algum tempo, a respirar os ares da validade das normas, da sedimentação de jurisprudência, da segurança jurídica. Pensando bem, um pouco de positivismo raiz, com pitadas de interpretação gramatical, não faria mal. Hans Kelsen dizia, há algumas centenas de anos atrás: a norma hipotética fundamental “tem de ser pressuposta, visto que não pode ser posta por uma autoridade, cuja competência teria de se fundar numa norma ainda mais elevada, o fundamento da sua validade já não pode ser posto em questão”. O jurista parece até anunciar, do além-vida, de maneira quase mesquinha: “eu avisei”.