- CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Tendo em vista a inserção do crime de violência psicológica contra a mulher no Código Penal pela Lei n. 14.188/21, o presente trabalho tem por objetivo dialogar e expor sobre o impacto desta alteração na legislação brasileira no que tange ao direito das mulheres, visto que embora a Lei n. 11.340/06, conhecida como Lei Maria da Penha, já abordasse sobre a violência psicológica desde a sua criação, tal forma de violência não era reconhecida especificamente como um crime autônomo, o que implicava na ausência de resposta penal para uma série de condutas perpetradas contra as mulheres.
- A CONSTITUIÇÃO FEDERAL COMO FUNDAMENTO DE CONQUISTAS DOS DIREITOS DAS MULHERES
Fazendo uma breve análise no que diz respeito às conquistas legislativas alcançadas pelas mulheres, é essencial destacar que a Constituição Federal de 1988, ao prever como garantia fundamental a igualdade entre homens e mulheres em direitos e obrigações (artigo 5º, inciso I), e trazer incentivos ao público feminino, como o fez expressamente no aspecto trabalhista (artigo 7º, inciso XX), eleitoral (artigo 17, §7º) e familiar (artigo 226, §5º), embasou a criação de diversas leis que visam a amparar o direito das mulheres e a protegê-las, inclusive no âmbito penal, objeto do presente estudo.
Nessa toada, na oportunidade em que a Constituição Federal dispõe sobre a família como direito social a ser protegido pelo Estado e impõe a criação de mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações (artigo 226, §8º), fundamentou a criação da Lei n. 11.340 no ano de 2006, conhecida como Lei Maria da Penha, que representa o maior avanço legislativo de garantia da mulher contra a violência doméstica e familiar, e já foi reconhecida pela Organização das Nações Unidas (ONU) como uma das mais avançadas no mundo.
- DAS ESPECIFICIDADES DA LEI MARIA DA PENHA
A Lei Maria da Penha inaugurou no ordenamento jurídico uma proteção específica às mulheres, aplicável no âmbito da unidade doméstica, da família ou de qualquer relação íntima de afeto, independentemente da orientação sexual da vítima, e lhes assegura oportunidades e facilidades para viver sem violência, além de preservar a saúde física e mental e o aperfeiçoamento moral, intelectual e social das mulheres.
Referida lei traz como novidade a disposição das formas de violência (artigo 7º), a fim de esclarecer que não existe apenas a violência física, mais facilmente detectada, mas também a psicológica, sexual, patrimonial e moral, as quais irão configurar infrações penais quando caracterizarem um dos tipos previstos no Código Penal ou nas legislações esparsas, por exemplo na Lei de Contravenções Penais, uma vez que, como regra, a Lei Maria da Penha não prevê crimes. Em não havendo a tipificação penal, a conduta violenta poderá configurar ilícito civil, sujeito à indenização, dentre outras medidas não privativas da liberdade.
Além de prever as formas de violência, a Lei Maria da Penha trouxe como grande avanço o estabelecimento da medida protetiva de urgência, que é espécie de medida cautelar passível de ser solicitada pela própria vítima ou pelo representante do Ministério Público junto ao Poder Judiciário, o qual poderá impor restrições ao agressor antes mesmo de ouvi-lo, ou seja, sem a garantia prévia do contraditório e da ampla defesa, considerando a necessidade de assegurar a integridade física e psicológica da vítima de forma imediata, diante do risco iminente que a acomete.
As medidas mais aplicadas consistem no afastamento do agressor do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida, na proibição de aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, sendo fixado limite mínimo de distância entre estes e o agressor, e também na proibição de contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação, mas há outras espécies previstas nos artigos 22 e 23 da Lei n. 11.340/06, embora menos usuais na prática.
Eventual descumprimento pelo agressor das medidas protetivas de urgência que lhe foram impostas irá sujeitá-lo à prática do crime previsto no artigo 24-A da Lei Maria da Penha, que traz pena de detenção de 3 (três) meses a 2 (dois) anos, passível, portanto, de prisão em flagrante, caso em que eventual fiança somente poderá ser concedida pela autoridade judicial. Na hipótese de o agressor não ser capturado em flagrante delito, será possível a decretação da sua prisão preventiva, nos termos do artigo 313, inciso III, do Código de Processo Penal, de forma a garantir a execução de referida medida, mediante pedido da autoridade policial ou do representante do Ministério Público.
Com exceção do citado crime de descumprimento de medidas protetivas de urgência, a Lei Maria da Penha não prevê crimes, e eventuais outras condutas praticadas contra a mulher que configurem uma das violências estabelecidas pelo seu artigo 7º poderão ser tipificadas como a infração penal correspondente, prevista no Código Penal ou nas legislações esparsas, tal como a Lei de Contravenções Penais. Como exemplo, cita-se o crime de ameaça, previsto no artigo 147 do Código Penal, que afeta a integridade psicológica da ofendida, e a contravenção penal de vias de fato, prevista no artigo 21 do Decreto-Lei n. 3.688/1941, que afeta a sua integridade física.
- DA VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA CONTRA A MULHER
A Lei Maria da Penha definiu a violência psicológica no artigo 7º, II, como:
Qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, violação de sua intimidade, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação.
O reconhecimento dos citados comportamentos como forma de violência foi essencial para garantir a proteção da mulher de maneira mais ampla, em especial diante do conhecido sistema patriarcal e machista, que não raro coloca a mulher em posição inferior e submissa ao homem, impossibilitando-a de expor as suas opiniões, o que configura uma violência silenciosa que merecia atenção. No entanto, referida previsão legal não foi acompanhada da tipificação penal específica da violência psicológica, deixando um vácuo legislativo.
Assim, considerando a inicial ausência do crime de violência psicológica, eventual prática de conduta que se enquadrasse na definição trazida pela Lei Maria da Penha só restaria punida criminalmente se caracterizasse infração penal já prevista na legislação, em atendimento aos princípios da legalidade e da reserva legal. Dessa forma, seria possível ao agressor incorrer, por exemplo, na prática do crime de ameaça (artigo 147 do Código Penal), que consubstancia em um mal injusto e grave verbalizado ou mesmo gesticulado à vítima; do crime de sequestro e cárcere privado (artigo 148 do Código Penal), na hipótese de ter havido a limitação do seu direito de ir e vir; bem como da infração penal de perturbação da tranquilidade, então prevista no artigo 65 da Lei de Contravenções Penais, hoje já revogada pela Lei n. 14.132/21, que inseriu o crime de perseguição no artigo 147-A do Código Penal.
Acontece que a prática nos plantões policiais demonstrou ser necessária a criação de um tipo penal para tratar de forma mais abrangente outras condutas, além daquelas já tipificadas, que pudessem ser enquadradas também como violência psicológica, permitindo, assim, a responsabilização penal do agressor, e não apenas a aplicação de medidas cíveis. Isso porque era corriqueiro o relato de mulheres em delegacias de polícia afirmando que sofriam violência psicológica, mas a conduta narrada não se enquadrava em nenhuma das infrações penais existentes, logo, não era punida criminalmente, embora abalasse sobremaneira o estado emocional da vítima, causando-lhe transtornos que excediam o aspecto cível e eram irreparáveis por indenização pecuniária.
Diante desse cenário, a Lei n. 14.188/21 criou o crime de violência psicológica contra a mulher, inserido no artigo 147-B do Código Penal, que penaliza com 6 (seis) meses a 2 (dois) anos de reclusão e multa a conduta de:
Causar dano emocional à mulher que a prejudique e perturbe seu pleno desenvolvimento ou que vise a degradar ou a controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, chantagem, ridicularização, limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que cause prejuízo à sua saúde psicológica e autodeterminação.
O dispositivo em questão tem como sujeito passivo a mulher, de forma a afastar a proteção deficiente que lhe recaía, já que boa parte dos relatos de violência psicológica feitos em unidades policiais não configuravam infração penal. Assim, a Lei n. 12.188/21 representou um grande avanço no que diz respeito ao direito e à proteção das mulheres, e de forma mais ampla que o previsto na Lei Maria da Penha, o crime não alcança apenas as relações domésticas, familiares e íntimas de afeto, mas protege toda mulher, independente da relação com o agressor, podendo a vítima ser criança, adolescente, adulta, ou idosa, e mesmo mulher transgênero, cuja identidade de gênero não coincide com o seu sexo biológico masculino.
O crime de violência psicológica contra a mulher restará configurado independente da reiteração de condutas, por não se tratar de crime habitual, uma vez que o dispositivo penal exige a provocação de dano emocional à vítima, ainda que decorrente de apenas uma das condutas por ele previstas, perpetradas mesmo que uma única vez. Difere, portanto, do crime de perseguição (Artigo 147-A do Código Penal), que exige atitudes reiteradas do agente.
Um dos primeiros registros do crime de violência psicológica contra a mulher no Estado de Mato Grosso do Sul trouxe o relato de vítima que foi casada por quase trinta anos com o autor, com quem teve dois filhos, e que durante a relação renunciou ao trabalho externo a fim de se dedicar à família, havendo com a sua atitude e companheirismo auxiliado o seu marido a construir grande patrimônio. Acontece que o autor se envolveu em uma relação extraconjugal, o que provocou abalo emocional à vítima, levando ao divórcio, e então o autor passou a dificultar a divisão dos bens e a colocar a vítima em situações vexatórias, por se apresentar com a atual namorada nas ocasiões em que iriam decidir sobre as questões relacionadas ao patrimônio e aos filhos gerados no casamento. Em uma destas ocasiões, inclusive, o autor provocou discussão acalorada com a vítima, durante a qual embora ele não houvesse proferido diretamente palavras ofensivas contra ela, a sua atitude e comportamento provocaram-lhe constrangimento e humilhação tais, que foram suficientes para gerar grande abalo emocional à vítima, a qual já estava bastante enfraquecida com o término da relação, em especial diante da sua dependência econômica do agressor.
O caso exposto demonstra que o crime de violência psicológica contra a mulher pode restar configurado independentemente de o autor proferir ofensas diretas ou ameaças contra a vítima, pois o dispositivo que o traz, por se tratar de tipo misto alternativo, permite o constrangimento ou a humilhação como condutas aptas a causar prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação da vítima, desde que lhe causem um dano emocional.
Como esclarece Jones Figueirêdo Alves:
De ver que a cláusula “qualquer outro meio”, contida no dispositivo, implica em referir situações não taxativamente previstas, uma delas podendo ser considerada a própria dependência econômica da mulher, que sirva de causa eficiente e deliberada para a dominação psicológica. No viés, é também causa determinante de dominação a que se submete a mulher por insegurança quanto à manutenção de sua própria subsistência.
Verifica-se, pois, que a abrangência do tipo penal, ao permitir que várias condutas possam caracterizar o crime de violência psicológica, importa até mesmo para viabilizar a análise pelo Poder Judiciário do pedido de medidas protetivas de urgência feito em favor da vítima, uma vez que, embora a lei não exija tipificação penal da violência para a concessão de referida cautelar, na prática elas geralmente são concedidas quando o agressor incorre na prática de uma infração penal.
Ademais, considerando a gravidade das consequências advindas da agressão psicológica que, conforme elencado por Maria Berenice Dias, “é tão ou mais grave que a violência física”, a criação de um crime específico para punir essa forma de violência foi fundamental para permitir uma resposta penal às condutas que a caracterizam.
Sobre o tema, destaco o seguinte trecho em que Alice Bianchini, Mariana Bazzo e Silvia Chakian tratam das consequências da violência psicológica:
(…) podem causar também danos à saúde psíquica e emocional das vítimas, dando causa ao desenvolvimento, por exemplo, de transtornos de ansiedade, depressão, ideação suicida, baixa autoestima, isolamento social, pânico, transtornos alimentares, de sexualidade ou do sono, dores crônicas, abuso de substâncias entorpecentes, dentre outros.
Com a finalidade de ilustrar as consequências práticas do dano emocional sofrido por uma mulher submetida à violência psicológica, cito trecho literário do livro “O Cortiço”, em que Aluísio Azevedo descreve os sentimentos da personagem Bertoleza enquanto vítima de violência praticada pelo seu convivente João Romão:
A infeliz vivia num sobressalto constante; cheia de apreensões, com medo de ser assassinada; só comia do que ela própria preparava para si e não dormia senão depois de fechar-se à chave. À noite o mais ligeiro rumor a punha de pé; olhos arregalados, respiração convulsa, boca aberta e pronta para pedir socorro ao primeiro assalto.
Fica claro, então, que a violência psicológica é passível de provocar enorme abalo emocional à vítima e merece resposta penal adequada, de forma a evitar a sensação de impunidade, restando demonstrado, portanto, o acerto do legislador ao tipificar as condutas que a caracterizam, quando praticada contra mulheres.
- DA COMPROVAÇÃO DO DANO EMOCIONAL PARA A CONFIGURAÇÃO DO CRIME DE VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA CONTRA A MULHER
O Código Penal traz como exigência para a configuração do crime de violência psicológica a provocação de um dano emocional à vítima que a prejudique e perturbe seu pleno desenvolvimento ou que vise a degradar ou a controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões. Ou seja, trata-se de crime material, que demanda resultado naturalístico, logo, o dano emocional provocado na vítima precisa ser comprovado.
A partir disso, surgiu inicialmente uma celeuma acerca da dispensa ou não da realização de prova pericial, mais especificamente a perícia psicológica, para materializar o crime do artigo 147-B do Código Penal, e se a sua ausência ensejaria a nulidade absoluta do processo, nos termos do artigo 564, III, “b”, do Código de Processo Penal, ou se seria possível a comprovação do dano emocional por outros meios de prova.
Acontece que a questão envolvendo o dano emocional é complexa e a exigência de laudo pericial para comprová-lo representaria um grande desafio, até mesmo diante da dificuldade de correlacionar o trauma sofrido pela vítima à atitude perpetrada pelo agressor, já havendo sido pontuado por Igor de Melo e Alex Rosa Ornelas que:
a perícia psicológica não é de simples aferição, devendo seguir as diretrizes que constam no CID-10, outra questão, mas não menos importante, é a ausência de profissionais preparados para a realização do exame.
Sobre o tema, o Juiz Federal Márcio André Lopes Cavalcante já se manifestou no sentido de que o dano emocional pode ser comprovado por intermédio do depoimento da vítima e da prova testemunhal, além de eventuais relatórios médicos ou psicológicos, dispensada a realização de perícia; e afirmou que as consequências de determinadas condutas, dentre aquelas que caracterizam o crime do artigo 147-B do Código Penal, são até mesmo intuitivas.
Assim, não obstante a celeuma inicial, tem-se estabelecido o entendimento pela não exigência de prova pericial para a comprovação do dano emocional, o qual poderá ser demonstrado por outros elementos. O próprio FONAVID (Fórum Nacional de Juízas e Juízes de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher) dispôs no enunciado n. 58, aprovado por unanimidade em 2 de dezembro de 2021, que: “A prova do dano emocional prescinde de exame pericial”.
Ocorre que, ainda que dispensada a perícia para a comprovação do dano emocional provocado na vítima, o Inquérito Policial por meio do qual se investiga o crime de violência psicológica contra a mulher deverá contar com elementos probatórios suficientes que indiquem a ocorrência de referido abalo à vítima, caso contrário restará impossibilitada a deflagração da ação penal contra o acusado pelo Ministério Público, ante a ausência de justa causa.
Dessa forma, a autoridade policial que tomar conhecimento da prática do crime de violência psicológica contra mulher irá instaurar Inquérito Policial independentemente da vontade da vítima, por se tratar de crime sujeito à ação penal pública incondicionada, ou seja, que não demanda representação da parte ofendida, e carregará a investigação de amplo material probatório, que não se limita ao laudo pericial e dele até mesmo prescinde, mas contará com todos os outros elementos disponíveis. Passamos, então, à análise dos meios de prova.
A palavra da vítima, que geralmente é responsável por dar início às investigações, é fundamental para a instrução do procedimento e tem alto valor probatório, sobretudo nas situações que versam sobre violência de gênero, como ocorre no crime de violência psicológica contra a mulher, o qual foi criado exclusivamente para vítimas mulheres devido à dominação psicológica que muitas vezes as acompanha nas relações.
Sobre a importância da palavra da vítima, vejamos o que diz o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, na Portaria do Conselho Nacional de Justiça n. 27, de 2 de fevereiro de 2021:
As declarações da vítima qualificam-se como meio de prova, de inquestionável importância quando se discute violência de gênero, realçada a hipossuficiência processual da ofendida, que se vê silenciada pela impossibilidade de demonstrar que não consentiu com a violência, (…).
Faz parte do julgamento com perspectiva de gênero a alta valoração das declarações da mulher vítima de violência de gênero, não se cogitando de desequilíbrio processual. O peso probatório diferenciado se legitima pela vulnerabilidade e hipossuficiência da ofendida na relação jurídica processual, qualificando-se a atividade jurisdicional, desenvolvida nesses moldes, como imparcial e de acordo com o aspecto material do princípio da igualdade (art. 5º, inciso I, da Constituição Federal).
Nesse mesmo sentido, já foi definido pelo Superior Tribunal de Justiça que a palavra da vítima, mormente quando o crime for praticado no contexto doméstico e/ou familiar, assume especial relevância, já que geralmente as ofensas proferidas contra as mulheres ocorrem na clandestinidade, o que dificulta a robustez do material probatório.
Diante da importância das declarações da vítima como meio de prova, é fundamental que o Delegado de Polícia responsável pelas investigações formalize uma oitiva pormenorizada, com o máximo de detalhes acerca da relação entre a vítima e o agressor, descrevendo todas as circunstâncias que contribuíram para provocar o estado emocional em que ela se encontra, uma vez que, embora o Código Penal não exija a reiteração de condutas para a caracterização do crime de violência psicológica, na prática a vítima procura o apoio policial quando já sofreu diversos atos de violência, e o relato completo é essencial para a visualização deste cenário.
Cabe aqui destacar que a submissão da vítima a uma oitiva pormenorizada sobre os fatos, sobretudo quando feita uma única vez na ocasião do registro da ocorrência, e sem questionamentos que recaiam sobre a sua vida privada, não suscita a revitimização, em especial quando respeitada a sua integridade física, psíquica e emocional, considerada a sua condição peculiar de pessoa em situação de violência doméstica e familiar. Isso porque a correta compreensão das circunstâncias dos fatos importa tanto para garantir uma proteção eficiente à vítima, como para assegurar o contraditório e a ampla defesa do acusado, que também são direitos fundamentais constitucionalmente previstos.
Além das declarações da vítima, que geralmente são colhidas na ocasião do registro do boletim de ocorrência, ou seja, como primeiro ato levado ao conhecimento da autoridade policial, a investigação também pode contar com os depoimentos de eventuais testemunhas que tenham presenciado o crime, ou dele hajam tomado conhecimento, neste caso as chamadas testemunhas indiretas. A compreensão da situação vivenciada pela vítima a partir da exposição feita por terceiros é importante, pois dissociada do abalo emocional que a envolve, mas não é imprescindível, já que esbarra na dificuldade de identificação de testemunhas quando o crime for praticado em contexto doméstico e/ou familiar, pela recusa de envolvimento no caso.
Também é possível que as atitudes que se amoldam àquelas entendidas como capazes de configurar a violência psicológica hajam sido registradas, seja por câmeras de segurança, que estão distribuídas em diversas casas e estabelecimentos comerciais, ou até mesmo por dispositivos eletrônicos particulares, como o próprio celular da vítima, no qual podem estar registradas as conversas travadas entre ela e o agressor, durante as quais ele incorreu na prática do crime.
E nessa toada, não apenas mensagens enviadas por aplicativos de conversa, como também pelas redes sociais, pelo próprio e-mail, e até mesmo por comentários que podem ser inseridos ao enviar um “pix” para a vítima, são passíveis de contribuir para a comprovação do crime, servindo como elementos de prova, bastando o registro pelas vítimas na ocasião do recebimento, dada a possibilidade de perda, uma vez que facilmente deletados pelo agressor.
O Formulário Nacional de Avaliação de Risco, estabelecido pelo Conselho Nacional de Justiça, também pode servir para instruir o Inquérito Policial que apura a violência psicológica, já que traz o histórico vivenciado pela mulher quando vítima de violência doméstica e familiar, o que geralmente demonstra a perpetuação da conduta que abala emocionalmente a vítima, muito comum nesse tipo de crime, embora a lei penal não exija a habitualidade para a sua configuração.
Nas situações em que a vítima já esteja fazendo acompanhamento psiquiátrico e terapêutico devido ao abalo emocional sofrido, decorrente da violência psicológica, é importante também que eventuais laudos médicos ou psicológicos e receitas médicas acompanhem o procedimento, podendo até mesmo ser submetidos com a própria vítima a exame pericial, de forma a tornar ainda mais robusto o conjunto probatório.
Acerca da comprovação do crime em análise, comenta o professor e Promotor de Justiça Rogério Sanches Cunha:
Esse crime, previsto no artigo 147-B do Código Penal, pode ser provado pela palavra da vítima, depoimento de testemunhas, relatórios de atendimento e quaisquer outros elementos que comprovem o impacto da conduta para o pleno desenvolvimento, controle das ações, autodeterminação e saúde da vítima e prescinde da realização de laudo pericial.
Por todo o exposto, conclui-se ser necessário que o Inquérito Policial que apura crime de violência psicológica contra a mulher esteja suficientemente instruído com indícios de autoria e materialidade delitivas, o que envolve a demonstração do dano emocional provocado à vítima, a fim de possibilitar o oferecimento da denúncia pelo órgão do Ministério Público contra o agressor, pois a ausência de lastro probatório mínimo, se não suprida, poderá ensejar o pedido de arquivamento por falta de justa causa para a ação penal.
- PANORAMA DA VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA NO ESTADO DO MATO GROSSO DO SUL: DO INQUÉRITO POLICIAL À AÇÃO PENAL
No Estado do Mato Grosso do Sul, mais especificamente na capital, Campo Grande, foram registrados cinquenta e dois casos de violência psicológica contra a mulher no ano de 2024, conforme consulta realizada em 22 de agosto no sistema de registro de ocorrências (SIGO), dos quais houve poucas denúncias, o que se atribui, dentre um dos motivos, ao fato de geralmente as condutas que configuram violência psicológica também se enquadrarem na prática de outras infrações penais, como a ameaça (Art. 147 do CP), a perseguição (Art. 147-A do CP) ou o sequestro e cárcere privado (Art. 148 do CP), e acabarem sendo por estas denunciadas, diante da maior facilidade de prová-las. Não obstante, nas situações de denúncia pela prática do crime de violência psicológica contra a mulher, verificou-se não ter sido apresentado laudo pericial como prova do dano emocional, o qual foi demonstrado por meio de outros elementos de prova, como os já listados no presente trabalho, e a denúncia foi recebida.
As situações em que há o arquivamento do Inquérito Policial, promovido pelo Ministério Público junto ao Poder Judiciário, devem-se na maioria das vezes pela insuficiência de provas para subsidiar a denúncia, e boa parte delas quando a vítima manifesta o desinteresse nas investigações, uma vez que, não obstante a natureza incondicionada da ação penal, o levantamento de provas da prática do crime de violência psicológica depende muito das informações fornecidas pela vítima, que pode esclarecer todas as condutas praticadas contra ela, e o dano emocional que lhe foi provocado, além de permitir a análise do vínculo existente entre aquelas e este. Assim, o desinteresse da vítima nas investigações dificulta a sua robustez, podendo ter por consequência o seu arquivamento, diante da ausência de justa causa para a ação penal.
Ainda sobre o arquivamento, também foram verificados no sistema de justiça casos em que embora a conduta perpetrada por um indivíduo pudesse suscitar impacto emocional à mulher, não foi passível de caracterizar o crime de violência psicológica, por não ter gerado o dano emocional que se exige para materializar criminalmente a conduta, já que eventuais discordâncias existentes entre as partes, a depender das circunstâncias, não são suficientes para prejudicar a saúde psicológica e o pleno desenvolvimento mental da mulher, podendo ser solucionadas em outra esfera, com o amparo do direito civil ou de família.
Quanto às condenações, foram analisadas algumas sentenças judiciais proferidas em Campo Grande/MS no ano de 2024, em ações penais que versavam sobre a prática do crime de violência psicológica contra a mulher, e naquelas em que houve a condenação do agressor o dano emocional ficou comprovado por meio da palavra da vítima, corroborada por outros elementos como o depoimento de testemunhas, além de registros por print de mensagens e ligações feitas pelo autor, sem a exigência da prova pericial, em consonância com o entendimento que prevalece atualmente.
Cita-se, a título de informação, que no ano em que criada a Lei n. 14.188, ou seja, em 2021, foram registrados no Estado de Mato Grosso do Sul 125 (cento e vinte e cinco) boletins de ocorrência narrando a prática do crime de violência psicológica contra a mulher, dos quais 20 (vinte) foram na capital, Campo Grande. No ano seguinte, 2022, foram registrados 384 (trezentos e oitenta e quatro casos) no Estado, dos quais 70 (setenta) foram na capital, e em 2023 computaram-se 612 (seiscentos e doze) registros do crime de violência psicológica contra a mulher no Estado de Mato Grosso do Sul, sendo 110 (cento e dez) em Campo Grande.
Em análise ao panorama citado, é possível afirmar que o menor número de ocorrências no ano de 2021 se deve ao fato de que a violência psicológica contra a mulher passou a ser crime apenas no final do mês de julho, ocasião em que finalmente inserida no Código Penal, o que possibilitou ser objeto de registro. O incremento seguinte, notado no ano de 2023, quando comparado com o ano anterior, tem como principal motivo o conhecimento da lei pelo público feminino, que cada vez mais é informado sobre os seus direitos, diante da ampla divulgação e maior facilidade de comunicação atual, e especialmente devido ao excelente trabalho prestado pela rede de atendimento à mulher do Estado de Mato Grosso do Sul, tanto de encorajamento como de proteção das mulheres, que se sentem incentivadas a denunciar a violência sofrida, saindo, assim, da invisibilidade.
Apesar disso, não se pode olvidar que o aumento do número de registros também reflete o aumento da violência. Espera-se, contudo, que os números passem a diminuir a partir do corrente ano de 2024, que até o momento conta com 346 (trezentos e quarenta e seis) registros no Estado do Mato Grosso do Sul, sendo 52 (cinquenta e dois) na capital, conforme consulta realizada no sistema de registro de ocorrências (SIGO) em 22 de agosto de 2024, uma vez que o conhecimento sobre a existência do crime e das condutas que caracterizam a violência psicológica tem se tornado cada vez mais amplo, o que permitirá inferir que esse tipo de violência, agora já punido criminalmente, está sendo reduzido.
- CONSIDERAÇÕES FINAIS
A inserção no Código Penal do crime de violência psicológica contra a mulher, criado especificamente para proteger vítimas mulheres, como se extrai do próprio nomem iuris, representou um grande avanço ao público feminino, mormente às vítimas de violência doméstica e familiar, que por vezes se encontram inseridas em um contexto de violência estrutural decorrente do sistema patriarcal, caso em que geralmente são atingidas por agressões verbais que lhe afetam emocionalmente.
Por se tratar, via de regra, de uma forma sutil de violência, tendo em vista que não deixa vestígios visíveis, o dano emocional consequente da violência psicológica nem sempre é de fácil comprovação, por isso a importância de o Delegado de Polícia responsável pelas investigações se empenhar na formação de um Inquérito Policial robusto, de forma a permitir a posterior condenação criminal do agressor. Não se exige, contudo, a realização da perícia psicológica, uma vez que difícil a constatação do vínculo entre o dano emocional provocado na vítima e as condutas contra ela praticadas.
Embora silenciosa, a violência psicológica é capaz de causar enorme abalo emocional na ofendida, responsável por degradação economicamente imensurável, do que se extrai o acerto do legislador na tipificação penal da conduta para a consequente punição do agressor nessa esfera.
Por derradeiro, visando à conscientização sobre o respeito a ser dedicado às mulheres, cita-se trecho da obra literária “A Dama das Camélias”, de Alexandre Dumas Filho, que se observado preveniria boa parte das violências sofridas por mulheres, ao dizer: “Lembre-se que se trata de uma mulher, e a ofensa que se faz a uma mulher se aparenta muito à covardia”.
É covarde quem ofende uma mulher.
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Sobre a Autora:
Fernanda Barros Piovano, Delegada de Polícia desde o ano de 2014, já atuou na Delegacia de Polícia de Rio Negro, na Delegacia Especializada de Repressão aos Crimes de Furtos e Roubos de Veículos, e atua desde 2016 na Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher, onde exerce a função de Delegada Adjunta. Pós-graduada em Direito Penal e especialista em Prevenção e Repressão à Corrupção. Ex-Analista Judiciário do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul.