*Por Felipe Madeira – Delegado de Polícia PCMS
A rotina de atendimento em delegacias traz situações que se repetem muito mais que outras, e são registradas com frequência diária. Furtos a residências, desacordos comerciais, problemas de vizinhança e violência doméstica estão entre os temas mais frequentes no conflituoso cotidiano do brasileiro.
Embora muitos casos flertem com a atipicidade e não se mostrem merecedores de intervenção penal como ultima ratio, outras tantos são, de fato, graves, e geram prejuízo permanente na vida das vítimas. Violência doméstica e vizinhança são temas dos mais antigos no direito penal, mas apenas recentemente vêm sendo cotejados em conjunto.
De fato, o legislador ordinário não parece ter cunhado a Lei Maria da Penha com o olhar voltado especificamente às relações de vizinhança – ao menos não expressamente. A análise aqui proposta se presta a concluir se, ainda assim, há possibilidade de alcance da lei nesta seara, e com qual amplitude, bem como vislumbrar alterações legislativas capazes de abordar o tema de forma satisfatória.
Conceito de vizinhança
A legislação cível não estabelece um conceito expresso de vizinhança, nem explica sua natureza jurídica. A doutrina pátria a reconhece como uma relação jurídica com aspectos obrigacionais e reais, e há certo consenso de que não se restringe a prédios contíguos. Em verdade, o critério utilizado é o de possibilidade de interferência na esfera jurídica alheia¹. Neste prisma, seria vizinho todo aquele afetado pela poluição sonora oriunda de uma residência, por exemplo.
Para os fins aqui relevantes, basta estabelecer como premissa que há, indubitavelmente, um vínculo entre os vizinhos. Ainda que não possuam afinidade ou parentesco, há uma relação jurídica de interferência direta, gerando deveres e direitos decorrentes do ordenamento pátrio, seja na esfera cível ou na penal. Resta saber: citado vínculo é passível de proteção pela Lei 11.340/06?
Análise de casos
No que diz respeito ao reconhecimento de vulnerabilidade em situações de vizinhança, se mostra produtiva a análise de três casos concretos ocorridos na capital sul-mato-grossense, todos recentes – e, não por acaso, dois em condomínios edilícios.
No primeiro, a situação era de vizinhos “de porta”. A vítima, mulher, residia em uma casa praticamente anexa à de um casal homoafetivo. O agressor, técnico em enfermagem, supostamente se incomodava com os latidos dos cachorros da moça e, como forma de retaliação, praticou inúmeras condutas criminosas, que foram filmadas pela vítima que instalou câmeras de segurança na frente da casa e no telhado exclusivamente para se proteger dos crimes².
O suspeito, que trabalhava com coleta de sangue em laboratórios, foi filmado jogando tubos com o material dentro da garagem da vítima (onde ficam os animais) e no portão – várias vezes e durante mais de um ano – tendo a perícia constatado se tratar, de fato, de sangue humano. Chutava o portão da casa para tentar calar os animais e atirava sacolas com fezes humanas, pedras e lixo no telhado, tendo quebrado inúmeras telhas.
A vítima, que se colocou aos prantos quando presenciou pela primeira vez a viatura da Polícia Civil atendendo a ocorrência, teve de iniciar tratamento psicológico em virtude das agressões. Segundo relatou, muitas vezes ficava sozinha em casa por conta das viagens a trabalho do marido, e se sentia impotente perante a situação.
Os dois últimos casos ingressam em um tema também corriqueiro na violência doméstica e familiar contra a mulher: a violência sexual. No primeiro deles, um dos residentes de um condomínio obteve acesso aos telefones de várias vítimas através do grupo de mensagens do condomínio, e passou a entrar em contato com as mesmas. Enviava vídeos e realizava vídeo-chamadas mostrando o órgão sexual e se masturbando, bem como mandava mensagens de cunho sexual para as vítimas e as perseguia dentro das áreas comuns.
No segundo, um habitante de um dos maiores condomínios da capital “espiava” os apartamentos vizinhos por baixo da porta e, em um dos casos, o invadiu, sempre com o objetivo de observar mulheres em sua intimidade³. A expulsão do condômino chegou a ser colocada em pauta em assembleia, mas a decisão final foi de não afastá-lo, acatando a tese de que seria possuidor de um transtorno chamado “parafilia”, basicamente uma opção sexual por práticas socialmente não aceitas. Difícil entender, entretanto, por que os demais condôminos seriam obrigados a tolerar crimes em benefício da excentricidade sexual de um único indivíduo.
Os três casos possuem outro fator em comum, além da relação de vizinhança: o dano psicológico à mulher. No primeiro, a vítima passou meses desembolsando gastos com psicólogos, além dos gastos materiais com os danos provocados.
No segundo, uma das vítimas relatou:
“Tenho pânico, ficava com medo de tudo, tinha medo de fazer as coisas aqui em casa, fazer barulho para disfarçar que estava em casa; chegava às seis horas e pedia pro segurança subir junto, pois tinha medo, morria de medo, quase fiquei louca… foi umas duas semanas com pesadelo. (…) Cheguei e falei pro síndico geral que se esse cara voltasse iria sair daqui, porque não iria viver neste inferno mais não”.
Outra, do mesmo caso, disse:
“Fiquei com mais medo, dormi algumas noites com o varal de chão aberto atrás da porta, aquele jeito que mostraram no grupo quando arrombaram a porta da minha vizinha”.
A vítima que teve a casa invadida pelo “parafílico” conta em reportagem ao “site” midiamax que:
“Eu desci com meu filho no playground e deixei a porta encostada, já que é um condomínio, local onde eu me mudei buscando segurança. Quando subi a porta estava aberta e encontrei ele no meu quarto. Fiquei sem reação (…). Eu não sabia, achei que ele tinha sido expulso, mas quando dei de cara com ele comecei a ter crises de pânico”.
Segundo o relato da vítima, o homem mexia nas roupas da vítima e saiu do local como se nada tivesse acontecido, sendo que as câmeras de segurança teriam flagrado o criminoso entrando em sua casa outras duas vezes no mesmo dia, e se masturbando na escadaria.
Fácil perceber que, em todas as situações acima expostas, as vítimas estavam em suas unidades domiciliares quando sofreram os crimes praticados pelos vizinhos. Mesmo dentro de suas residências, foram alvo de condutas significativamente graves, gerando, como consequência, danos psicológicos. Parece-nos óbvio, portanto, que situações de vizinhança podem, sim, gerar situação de vulnerabilidade à mulher, mormente levando-se em consideração as “condições peculiares” das vítimas, conforme o comando do art. 4º da lei.
Vulnerabilidade por violência doméstica e familiar contra a mulher e vulnerabilidade por vizinhança
A lei presumiu vulnerável a mulher em situação de violência “doméstica e/ou familiar”. Doméstica seria a violência no âmbito da casa, local onde reside a vítima mulher. Familiar seria aquela que tem origem na família, seja o vínculo sanguíneo ou afetivo.
Visando elucidar as situações passíveis de incidência da lei, o artigo 5º se dedicou a explorar os conceitos:
“Art. 5º Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial: (Vide Lei complementar nº 150, de 2015)
I – no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;
II – no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;
III – em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação”.
A rápida leitura do dispositivo revela: não parece haver qualquer possibilidade de inclusão da relação de vizinhança nos incisos II e III, que demandam vínculos familiares e afetivos. O inciso I, por sua vez, gera ao menos dúvida, pois se o termo “unidade doméstica”, em um olhar menos atento, parece sinalizar negativamente, o seu conceito, trazido logo após, de “espaço de convívio permanente de pessoas”, revela uma inegável amplitude que pode, sim, vir a abarcar a vizinhança.
De fato, o inciso I parece ser propositalmente amplo: dispensa expressamente qualquer vínculo familiar, e ainda exemplifica com as pessoas “esporadicamente agregadas”. Neste sentido, se aquele que frequenta uma residência de forma esporádica pode ser objeto da lei, difícil argumentar que um vizinho que convive diariamente com a vítima, vendo-a várias vezes por dia, não possa.
A vizinhança pode ser facilmente visualizada como um “espaço de convívio permanente de pessoas”. Se não em todas as situações, ao menos naquelas em que há grande proximidade entre as duas partes, gerando interferência direta na esfera de liberdade, como no caso de uma vila com diversas casas contíguas.
A situação é de fácil visualização nos condomínios: cada condômino possui sua unidade residencial, com vizinhos de porta, muitas vezes acima e abaixo, situação que gera troca de ruídos, acesso visual e frequência conjunta nas áreas comuns. A proximidade visual e de ruídos neste cenário torna possível que um vizinho sofra violência por parte de outro, mesmo dentro de sua unidade doméstica – cenário que é corriqueiro no registro de ocorrências e foi experimentado por grande parte dos brasileiros que já residiram em condomínios.
A Convenção de Belém do Pará (Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher), por sua vez, traz um conceito bem mais amplo de violência doméstica. O documento internacional é expressamente mencionado na exposição de motivos da Lei Maria da Penha como norteador do diploma e assim dispõe:
Artigo 2
Entende-se que a violência contra a mulher abrange a violência física, sexual e psicológica:
a. ocorrida no âmbito da família ou unidade doméstica ou em qualquer relação interpessoal, quer o agressor compartilhe, tenha compartilhado ou não a sua residência, incluindo-se, entre outras formas, o estupro, maus-tratos e abuso sexual;
b. ocorrida na comunidade e cometida por qualquer pessoa, incluindo, entre outras formas, o estupro, abuso sexual, tortura, tráfico de mulheres, prostituição forçada, seqüestro e assédio sexual no local de trabalho, bem como em instituições educacionais, serviços de saúde ou qualquer outro local; e
c. perpetrada ou tolerada pelo Estado ou seus agentes, onde quer que ocorra.
De fato, o diploma protetivo à mulher surgiu como uma resposta a uma recomendação feita ao Estado Brasileiro, constando da exposição de motivos que o regime de urgência solicitado à época na tramitação se justificava “pelo cumprimento das recomendações ao Estado Brasileiro do Comitê para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher – CEDAW, do Plano de Ação da IV Conferência Mundial sobre a Mulher (1995), da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher – Convenção de Belém do Pará (1994), do Protocolo Facultativo à Convenção sobre Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, além de outros instrumentos de Direitos Humanos”.
Neste panorama, o controle de convencionalidade da Lei Maria da Penha parece sugerir que, ao menos em seu aspecto cível, a lei deve ser aplicada na integralidade às situações de vizinhança. No que diz aos aspectos processuais penais, entretanto, a questão merece uma análise mais complexa, em virtude dos efeitos mais drásticos à esfera individual do agressor, que vão desde as restrições mais simples ao direito de ir e vir quanto à efetiva prisão.
Ainda que se entenda pela aplicação tão somente dos aspectos cíveis, o impacto na proteção da vítima já se mostra notório. A lei prevê, no capítulo que trata da assistência à mulher:
Art. 9º A assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar será prestada de forma articulada e conforme os princípios e as diretrizes previstos na Lei Orgânica da Assistência Social, no Sistema Único de Saúde, no Sistema Único de Segurança Pública, entre outras normas e políticas públicas de proteção, e emergencialmente quando for o caso.
§ 1º O juiz determinará, por prazo certo, a inclusão da mulher em situação de violência doméstica e familiar no cadastro de programas assistenciais do governo federal, estadual e municipal.
§ 2º O juiz assegurará à mulher em situação de violência doméstica e familiar, para preservar sua integridade física e psicológica:
I – acesso prioritário à remoção quando servidora pública, integrante da administração direta ou indireta;
II – manutenção do vínculo trabalhista, quando necessário o afastamento do local de trabalho, por até seis meses.
III – encaminhamento à assistência judiciária, quando for o caso, inclusive para eventual ajuizamento da ação de separação judicial, de divórcio, de anulação de casamento ou de dissolução de união estável perante o juízo competente. (Incluído pela Lei nº 13.894, de 2019)
§ 3º A assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar compreenderá o acesso aos benefícios decorrentes do desenvolvimento científico e tecnológico, incluindo os serviços de contracepção de emergência, a profilaxia das Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST) e da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS) e outros procedimentos médicos necessários e cabíveis nos casos de violência sexual.
§ 4º Aquele que, por ação ou omissão, causar lesão, violência física, sexual ou psicológica e dano moral ou patrimonial a mulher fica obrigado a ressarcir todos os danos causados, inclusive ressarcir ao Sistema Único de Saúde (SUS), de acordo com a tabela SUS, os custos relativos aos serviços de saúde prestados para o total tratamento das vítimas em situação de violência doméstica e familiar, recolhidos os recursos assim arrecadados ao Fundo de Saúde do ente federado responsável pelas unidades de saúde que prestarem os serviços. (Vide Lei nº 13.871, de 2019) (Vigência)
§ 5º Os dispositivos de segurança destinados ao uso em caso de perigo iminente e disponibilizados para o monitoramento das vítimas de violência doméstica ou familiar amparadas por medidas protetivas terão seus custos ressarcidos pelo agressor. (Vide Lei nº 13.871, de 2019) (Vigência)
§ 6º O ressarcimento de que tratam os §§ 4º e 5º deste artigo não poderá importar ônus de qualquer natureza ao patrimônio da mulher e dos seus dependentes, nem configurar atenuante ou ensejar possibilidade de substituição da pena aplicada. (Vide Lei nº 13.871, de 2019) (Vigência)
Percebe-se que a aplicação da lei traz inúmeros benefícios à vítima, chamando especial atenção, no caso da vizinhança, o parágrafo quinto, que trata do ressarcimento de dispositivos de segurança. Exemplificativamente, no primeiro caso concreto abordado, em que a vítima teve de instalar câmeras de segurança para flagrar as inúmeras condutas lesivas do agressor, o reconhecimento da situação de violência doméstica importará no ressarcimento dos custos do equipamento por parte deste último.
Não nos parece insensato, por todo o exposto, que a lei possa, sim, ser aplicada em relações entre vizinhos. Para tanto, por óbvio, se mostra necessário o preenchimento de ao menos outro requisito previsto no caput do citado artigo: que a violência, praticada contra a mulher, seja baseada no gênero.
Fato é que o espírito da lei foi de proteger mulheres em situação de vulnerabilidade, acima de qualquer coisa. Torna-se pré-requisito, portanto, para a admissão da tese acima esposada, que a situação de vizinhança possa gerar, ao menos em certas mulheres, situações de vulnerabilidade. Esta intenção do legislador parece estar explícita também no mencionado art 4º da Lei, que explica:
“Art. 4º Na interpretação desta Lei, serão considerados os fins sociais a que ela se destina e, especialmente, as condições peculiares das mulheres em situação de violência doméstica e familiar”.
A possibilidade, entretanto, não deve ser presumida como regra. Em nosso sentir, e sob pena de banalização da lei, somente situações extremas como as mencionadas – em que há violência, grave ameaça, perseguição ou crimes sexuais – deveriam merecer a especial proteção da lei específica. É de nosso sentir que a legislação a regular o tema, em sendo aprovada, deveria estabelecer critérios como os acima citados, de forma a evitar a aplicação da lei a toda e qualquer situação de vizinhança, o que acabaria por deturpar o instituto.
Não há consenso sobre o tema, mas a aplicação da Lei Maria da Penha entre vizinhos já vem sendo discutida há algum tempo, não apenas no judiciário, mas também no legislativo, tendo sido proposto, inclusive, projeto de lei visando inserir a situação de forma definitiva (PLS 28/2016, do senador Hélio José (PMDB-DF)), que foi arquivado em 2018, ao final da legislatura.
Assim previa o projeto:
“O CONGRESSO NACIONAL decreta:
Art. 1º Acrescente-se ao Art. 5º da Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006:
“Art. 5º ………… …..
IV – nas regiões de vizinhança da moradia da mulher, conjunto habitacional, edifício ou similares, onde o agressor convive em proximidade com a vítima.”
A justificação do projeto esclarecia:
“A Lei Maria da Penha, como ficou conhecida a Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006, trouxe a garantia dos direitos das mulheres a um patamar mais justo e, em muitas situações, reduziu a violência contra a mulher.
As situações cobertas pela Lei são amplas, porém não o suficiente para que se proteja a mulher do assédio, da ameaça e da violência perpetrada por vizinhos, notadamente em conjuntos habitacionais formados por casas ou apartamentos. Em muitos desses casos a mulher ameaçada acaba tendo que mudar de endereço, às suas custas, já que medidas protetivas não são acionadas pelo Estado em vista de entendimento restritivo da Lei Maria da Penha.
Em vários casos que nos foram relatados, a mulher vítima não recebe atenção nas delegacias e nos juizados por compreenderem as autoridades tratar-se de rusgas ou violência entre vizinhos, não reconhecendo a mulher como vítima mais fraca na relação de vizinhança.
Explicitar essa hipótese na Lei certamente proporcionará à mulher agredida ou ameaçada os meios legais necessários para que acione a autoridade judiciária competente e receba o mesmo tratamento de urgência que é aplicado nos casos de violência doméstica”.
O voto relator do arquivamento, proferido pela Senadora Marta Suplicy, é bastante elucidativo, e caminha, em certa maneira, ao lado do entendimento aqui exposto:
“(…)Conforme disposto no art. 102-E, inciso IV, do Regimento Interno do Senado Federal, compete à CDH opinar sobre proposições pertinentes aos direitos da mulher, como é o caso do PLS nº 28, de 2016. É bastante evidente que as mulheres merecem a proteção da lei em situações de convívio próximo nas quais seja mais fácil a ação de agressores. Onde houver maior potencial lesivo, logicamente deve ser maior a proteção legal.
Porém, o inciso I do art. 5º da Lei Maria da Penha restringe sua abrangência a agressões cometidas no âmbito de uma unidade doméstica. Há, como bem sabemos, situações diversas de moradia que implicam proximidade entre os vizinhos próximos, tais como conjuntos habitacionais, condomínios, assentamentos, acampamentos, fazendas e outras situações que podem caracterizar uma comunidade residencial. Nessas situações, a maior vulnerabilidade decorrente da proximidade entre vizinhos, com acesso facilitado do agressor à vítima, justificaria a maior proteção legal.
Contudo, a proposição traz elevado risco de introduzir, na Lei Maria da Penha, conceitos pouco claros, com vícios de redação e de técnica legislativa. Há confusão entre conceitos como residência e domicílio, além de pouca clareza na ementa, e inobservância de outras regras fixadas para a redação e para a alteração das leis na Lei Complementar nº 95, de 26 de fevereiro de 1998, como constatamos, por exemplo, na inexistência de cláusula de vigência.
A preocupação do autor é meritória, pois a relação de proximidade no convívio ou familiaridade com as rotinas da vítima podem favorecer o autor de agressões contra mulheres em contexto de vizinhança, mas entendemos que a legislação processual penal já contempla essas situações, que não são crimes em si, mas sim fatores que facilitam a prática de crimes ou dificultam a defesa da vítima”.
De fato, nos parece demasiadamente amplo estender a aplicação da lei a toda e qualquer relação de vizinhança. Mantendo-nos coerentes à pressuposição de que a lei visa proteger mulheres em situação de vulnerabilidade, não entendemos que toda e qualquer relação de vizinhança ensejará este status. A situação de uma mulher economicamente independente, que reside com vários familiares de idades, compleição física e sexo diferentes, e é vítima de uma injúria é completamente diferente da mulher idosa e pobre que reside sozinha e recebe ameaça de morte.
Essencial, portanto, que tanto a eventual aplicação da lei no estado atual por operadores do direito quanto a futura regulamentação legislativa estabeleçam critérios mais rígidos que simplesmente a relação de vizinhança. Conforme já exposto, é do nosso sentir que apenas casos envolvendo violência, grave ameaça, perseguição e crimes sexuais mereceriam o tratamento mais gravoso, a uma por exporem o bem jurídico protegido a um risco muito maior, a duas por demandarem uma maior proteção à vítima, principalmente no que diz respeito ao tratamento psicológico.
Neste sentido, parece prudente a inserção de um inciso IV no art. 5º do diploma, nos moldes do a seguir proposto:
“Art. 5º (…)
IV – decorrente do vínculo de vizinhança, quando o crime sexual, de perseguição ou praticado com violência ou grave ameaça, submeta a mulher a situação de vulnerabilidade”.
Ainda que o ideal seja uma regulamentação expressa e clara do tema por parte do legislativo, de forma a espancar quaisquer dúvidas sobre a incidência do diploma, acreditamos, de forma estritamente jurídica, que a situação de vizinhança pode, sim, ser eventualmente incluída no inciso I do art. 5º da lei. O fato do agressor, em si, não estar fisicamente presente dentro da unidade doméstica da vítima não deveria impedir a incidência do dispositivo quando o dano é causado à mesma dentro da própria unidade.
Trata-se, ainda, de uma questão de proporcionalidade. Por força do inciso III, um ex-namorado que nunca tenha coabitado com a vítima e já esteja há mais de ano morando em outro Estado da federação poderá sofrer as sanções da lei normalmente, ainda que não apresente risco concreto; não nos parece razoável que um vizinho que diariamente espiona a vítima por baixo da porta e invade seu apartamento, provocando terror diário à mesma, não possa ser.
Superada a discussão sobre aplicação ou não da lei, se apresenta outra dúvida: devem incidir os aspectos penais e cíveis em toda sua extensão?
Sobre o tema, é consenso razoável na doutrina que a Lei Maria da Penha possui natureza mista, possuindo dispositivos processuais penais e cíveis, além do tipo penal de descumprimento de medida protetiva. De fato, a lei traz um tratamento processual penal ímpar ao suspeito, tratando com maior gravidade os crimes desta natureza, possibilitando inclusive prisão em flagrante mesmo de crimes de menor potencial ofensivo que, em outros cenários, ensejariam mero Termo Circunstanciado de Ocorrência.
Entendemos defensável que o alargamento do conceito de “unidade doméstica” para abranger vizinhos (principalmente quando provocam danos dentro da residência da vítima) se trate de interpretação extensiva processual penal, plenamente admitida. Nos parece claro que, ao se reportar ao termo “unidade doméstica”, o legislador quis se referir ao local em que é produzida a lesão ao bem jurídico, e não ao local onde se encontra o agressor que a perpetua.
Filiamo-nos, portanto, à corrente de que a lei pode, sim, no estado atual, ser aplicada integralmente a relações de vizinhança. Assim já o fazem alguns magistrados brasil afora, muito embora a regra ainda seja da não aplicação. A exemplo, decisões proferidas pela 4ª Vara Criminal de Campo Grande/MS4, pela vara única de Ilhabela/SP5 e outras.
Medidas protetivas de urgência e/ou cautelares diversas da prisão
Atualmente, prevalece entendimento de que as medidas protetivas de urgência podem ter natureza cível ou processual penal, a depender. Podem, inclusive, ser ajuizadas em ação cautelar cível satisfativa, independente da sorte do inquérito ou processo penal (STJ. 4ª Turma. REsp 1419421-GO, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 11/2/2014 (Info 535)). Neste raciocínio, seriam processuais penais as dos incisos I, II e III (suspensão/restrição de armas, afastamento do lar e proibição de aproximação ou contato), e cíveis as dos IV, V, VI e VII (restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores, prestação de alimentos, comparecimento do agressor a programas de recuperação e reeducação e acompanhamento psicossocial do agressor).
Em sendo encampado o entendimento aqui defendido, poderiam ser aplicadas quaisquer das medidas listadas. Há, entretanto, a possibilidade de um posicionamento de meio termo, defendendo a aplicação tão somente das de natureza cível.
Ora: se o único obstáculo à aplicação da lei for alguma alegação (em nosso sentir, equivocada) de que a lei merece ser interpretada restritivamente nas questões que repercutem na esfera processual penal, nada impede que ao menos as medidas de natureza cível se apliquem. Isto porque, no direito civil, a analogia e interpretação extensiva possuem ampla aplicação, de maneira muito menos restrita que na seara penal e processual penal.
Assim, em entendendo o operador do direito cabíveis tão somente as medidas cíveis, poderia defender que, no âmbito penal, fossem aplicadas as medidas cautelares diversas da prisão, muito embora ofereçam uma proteção inegavelmente menor à vítima. Há de se atentar, entretanto, que, ao contrário das medidas protetivas de urgência da lei 11.340/06, que podem ser oferecidas pela própria vítima, as cautelares do Código de Processo Penal exigem representação por parte da autoridade policial ou ministério público.
Por parte da atuação do Delegado de Polícia, entendemos que o encaminhamento das medidas protetivas de urgência com uma representação subsidiária resolveria a situação. Em entendendo o juízo não ser caso de aplicação da Lei Maria da Penha, poderia, de forma subsidiária, apreciar o cabimento de alguma(s) medida(s) cautelar(es) do CPP.
O tema apresenta certa complexidade e a solução, na nossa visão, reside na maior proteção da mulher vulnerável. A realidade experimentada e aqui retratada nos mostra que, no cenário atual, este grupo específico encontra-se em uma injustificável posição de proteção deficiente. Ainda assim, não se trata aqui da defesa de irresponsáveis “malabarismos jurídicos” ou indevidos alargamentos da punição estatal, ao arrepio da lei. Entendemos que a aplicação da lei Maria da Penha a situações de vulnerabilidade por vizinhança não apenas é uma interpretação juridicamente precisa, mas também aquela que melhor protege estas vítimas tão comuns no cotidiano brasileiro – e, exatamente por isso, um objetivo a ser alcançado por todo profissional defensor da segurança pública.
¹ FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: reais. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 539-540. ASCENSÃO, José de Oliveira. A preservação do equilíbrio imobiliário como princípio orientador da relação de vizinhança. Revista da Ordem dos Advogados, Lisboa, v. I, ano 67, p. 1-14, jan. 2007, p. 2.
5 https://www.conjur.com.br/2016-mar-22/juiz-usa-lei-maria-penha-resolver-briga-entre-vizinhas
BIBLIOGRAFIA:
CANAVERDE, Luciana. A eficácia das medidas protetivas de urgência no âmbito da violência doméstica. Tratado contemporâneo de Polícia Judiciária, Mulheres Delegadas. 1ª Edição, São Paulo: Umanos Editora, 2021. P. 225-232.
CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Aplicação das medidas protetivas da Lei Maria da Penha também a ações cíveis. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: <https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/228499b55310264a8ea0e27b6e7c6ab6>. Acesso em: 01/02/2023
CAVALCANTE, Márcio André Lopes. O requerido (autor da violência) não será citado para contestar o pedido de medidas cautelares dos incisos I, II e III do art. 22 da Lei Maria da Penha. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: <https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/16f8e136ee5693823268874e58795216>. Acesso em: 01/02/2023
*Felipe Alvarez Madeira é Delegado de Polícia Civil no Estado do Mato Grosso do Sul, atuando na 5ª Delegacia de Polícia Civil de Campo Grande/MS.